terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Confissões tásticas

          
Foto: Lydia Marano, "Dressmaker mannikin's biological

'Depois da infância sempre me considerei um ponteiro de horas vagas, cativa dos restos de duas décadas falidas e de uma geração poluída de sedentarismo digital e especulações imobiliárias. Não era uma jovem estimável, não me levava a lugar algum, era do tipo perecível e fatigada. Só que aos 27 anos depois de um surto paranoico, sabe-se lá porque, comecei a ter alucinações quase que mensalmente. Passei a encontrar com exóticas criaturas escondidas em meu armário de cozinha, no pote de arroz, caixa de fosforo, gavetas, dentro do violão, copos, guarda-roupa e as vezes dentro do box do banheiro. Por sorte esses seres não eram assustadores, eram apenas peculiares e na maioria das vezes amigáveis ou indiferentes. Entre várias figuras que encontrei perdidas em minha casa, uma em especial me chamou a atenção.

Numa tarde ensolarada e de aparência calma, depois de assistir centenas de pedaços dos programas da TV a cabo, uma fundura assolou meu estômago, era a fome provida do mal em não fazer nada. Fui de meias até a cozinha e ao abrir o armário da dispensa deparei-me com uma coisa magra e delicada, agachada na parte de baixo do armário. Não hesitou ao me ver, parecia ser do tipo “pouco-surpresa”. Seu olhar vulnerável reivindicava uma atitude de minha parte. Acabei destampando seu tornozelo esquerdo com um abridor de latas e um molho grosso escorreu sobre o piso branco da cozinha, por alguns segundos admirei meio pasma aquela cor rara, escorria um marrom taitiano maravilhoso.
            
Pedi a ela para que fosse até a sala e ao sair do módulo sua peruca caiu acidentalmente, uma careca linda e oval radiou-se por todo cômodo. Nesse luminoso e constrangido momento, um homem de meia idade que dizia ser meu confrade, saiu de um quarto ensolarado, pôs-se ereto e veio de encontro a decaída cabeleira vermelha. Ele perguntou se podia usá-la, queria encontrar algum parente desregrado por aí, alegava que a nova peruca lhe ajudaria a ser otimista. Ok, abri a porta e expulsei-o num pontapé. 
            
A moça com sua cabeça lisa e lustrosa me serviu de modelo, escrevi um slogan na parede: “MANEQUIM ENTORNADA”, depois esmurrei o sofá para amedrontá-la e impor respeito. Nunca fui uma mulher fácil de ser notada... Com um ar pseudo-cascavel mirei o controle remoto em sua cabeça e apertei o número “0 à esquerda”, ela imitou o sangue frio de um rinoceronte, encenou a lucidez, rogou pragas em latim aos transeuntes que passavam na rua, jurou em falso e declarou misericórdia às devoradas estudantes de balé. Depois apertei o botão de desligar e fingi não sentir seu cheiro forte. Escrevi outras palavras na parede: “aluguel” “plantas carnívoras” “demora”... havia acabado com o batom...
            
Setembro acusava falsa beleza e eu aparentemente beijava melosamente aquela vítima do deslocamento dimensional. Propus uma atividade física e corremos aflitas por toda casa, trombávamos violentamente no estreito corredor a ponto de machucarmos. Nessa correria desordenada, ambos os olhares não se cruzavam em nenhum momento, estávamos perdidamente motivadas a encontrar o extinto “sei-lá-o-que”. Foi uma tentativa débil,  repleta de dicotomias censorias, arriscando resolver a penosa equação: nóia x 0 = y

Esgotada de tantas acrobacias fui para o banheiro e mergulhei na banheira repleta de águas-vivas. Em cada braçada naquela solução turva, as forças necessárias para uma ocasião propensa a vitalidade esvaiam-se. Abracei uma arraia gigante com seu ferrão serrilhado do avesso. Minha manequim esfumaçou-se no ar. Desolada, encontrei-me novamente num estado anacrônico de sociopatia. Desprovida de antiácidos e ansiolíticos, continuei submersa no fundo da banheira procurando no coral de algas algum plano de fuga.

Um comentário:

Murdock disse...

Bom presente de natal.

Bela mistura surrealista simbólica.

Bela imagem dos seres nos cantos da casa e tente diminuir os alucinógenos!!

Viva!