'Depois da infância sempre me
considerei um ponteiro de horas vagas, cativa dos restos de duas décadas
falidas e de uma geração poluída de sedentarismo digital e especulações imobiliárias. Não
era uma jovem estimável, não me levava a lugar algum, era do tipo perecível e
fatigada. Só que aos 27 anos depois de um surto paranoico, sabe-se lá porque,
comecei a ter alucinações quase que mensalmente. Passei a encontrar com
exóticas criaturas escondidas em meu armário de cozinha, no pote de arroz, caixa de fosforo, gavetas, dentro do violão, copos, guarda-roupa e as vezes dentro
do box do banheiro. Por sorte esses seres não eram assustadores, eram apenas peculiares e na maioria das vezes amigáveis ou indiferentes. Entre várias figuras
que encontrei perdidas em minha casa, uma em especial me chamou a atenção.
Numa tarde ensolarada e de aparência calma, depois de assistir centenas de pedaços dos programas da TV
a cabo, uma fundura assolou meu estômago, era a fome provida do mal em não
fazer nada. Fui de meias até a cozinha e ao abrir o armário da dispensa
deparei-me com uma coisa magra e delicada, agachada na parte de baixo do
armário. Não hesitou ao me ver, parecia ser do tipo “pouco-surpresa”. Seu olhar
vulnerável reivindicava uma atitude de minha parte. Acabei destampando seu
tornozelo esquerdo com um abridor de latas e um molho grosso escorreu sobre o
piso branco da cozinha, por alguns segundos admirei meio pasma aquela cor rara,
escorria um marrom taitiano maravilhoso.
Pedi a ela para que fosse até a sala
e ao sair do módulo sua peruca caiu acidentalmente, uma careca linda e oval
radiou-se por todo cômodo. Nesse luminoso e constrangido momento, um homem de
meia idade que dizia ser meu confrade, saiu de um quarto ensolarado, pôs-se
ereto e veio de encontro a decaída cabeleira vermelha. Ele perguntou se podia
usá-la, queria encontrar algum parente desregrado por aí, alegava que a nova
peruca lhe ajudaria a ser otimista. Ok, abri a porta e expulsei-o num
pontapé.
A moça com sua cabeça lisa e
lustrosa me serviu de modelo, escrevi um slogan na parede: “MANEQUIM
ENTORNADA”, depois esmurrei o sofá para amedrontá-la e impor respeito. Nunca
fui uma mulher fácil de ser notada... Com um ar pseudo-cascavel mirei o
controle remoto em sua cabeça e apertei o número “0 à esquerda”, ela imitou o
sangue frio de um rinoceronte, encenou a lucidez, rogou pragas em latim aos transeuntes que passavam na rua, jurou em falso e declarou misericórdia às devoradas estudantes de balé. Depois
apertei o botão de desligar e fingi não sentir seu cheiro forte. Escrevi outras
palavras na parede: “aluguel” “plantas carnívoras” “demora”... havia acabado
com o batom...
Setembro acusava falsa beleza e eu
aparentemente beijava melosamente aquela vítima do deslocamento dimensional.
Propus uma atividade física e corremos aflitas por toda casa, trombávamos
violentamente no estreito corredor a ponto de machucarmos. Nessa correria
desordenada, ambos os olhares não se cruzavam em nenhum momento, estávamos
perdidamente motivadas a encontrar o extinto “sei-lá-o-que”. Foi uma tentativa
débil, repleta de dicotomias censorias,
arriscando resolver a penosa equação: nóia x 0 = y
Esgotada de tantas acrobacias fui
para o banheiro e mergulhei na banheira repleta de águas-vivas. Em cada braçada
naquela solução turva, as forças necessárias para uma ocasião propensa a
vitalidade esvaiam-se. Abracei uma arraia gigante com seu ferrão serrilhado do avesso. Minha manequim esfumaçou-se no ar. Desolada,
encontrei-me novamente num estado anacrônico de sociopatia. Desprovida de
antiácidos e ansiolíticos, continuei submersa no fundo da banheira procurando
no coral de algas algum plano de fuga.